PORTO SEGURO
O sul da Bahia confirma a sua vocação de paraíso da
temporada e embala 165 mil pessoas em uma festa regada a cerveja e
lambaeróbica que vai durar até o Carnaval. A cena se repete, diariamente, no aeroporto de Porto
Seguro: pousa o avião, lotado de turistas, enquanto, aqui embaixo, a
turma que está indo embora tira as malas do chão e saca o cartão de
embarque, preparando-se para partir. Então, durante alguns instantes, o
saguão vira território de mistura, com os recém-chegados, risonhos,
quase todos branquinhos de escritório, esbarrando nos que se despedem da
terra, estes já queimados de sol, penteados pelo vento, com o tênis
encardido, um fiapo de cabelo artificial escorrendo na nuca e uma
indisfarçável melancolia de fim de festa. No alto verão, essas tribos
são tantas e tamanhas que nos bastidores corre sempre o boato do colapso,
o disse-me-disse que a cidade não vai agüentar. Mas agüenta.
Qualé? Porto Seguro tem açúcar? Tem, claro, e eles
ainda misturam abacaxi, uva, guaraná em pó, canela, vodca, leite
condensado, groselha, mel e gelo, numa panacéia de nome sugestivo:
capeta. E, além das bebidinhas pouco católicas, a cidade tem praias
belíssimas, ilhas para se visitar, água cristalina para se mergulhar,
restaurantes decentes e uma vida noturna que gosta de avançar até as 8
da manhã, emendando com a diurna.
E pensar que até o início dos anos 70
Porto Seguro ainda dependia de geradores movidos a óleo para ter luz, a
água era carregada pra lá e pra cá no lombo dos burros e turista era
só gato-pingado. O primeiro grande passo foi uma estrada, a BR-367, que,
a reboque do milagre econômico, transformou a cidade para sempre. Depois
veio a lambada, que ajudou a popularizar o astral dançante das cabanas de
praia. Com o tempo, o que era só lenda, papo de hippie, como as vilas de
Arraial D’Ajuda e Trancoso, que escondem (ou escondiam) algumas das
praias mais bonitas do Brasil, virou argumento nas agências de viagem.
Finalmente, há pouco tempo, o aeroporto ganhou uma pista extensa, capaz
de receber os jatos e os seus tão ilustres passageiros. Hoje, algumas
empresas chegam a trazer 3 mil "gentes" a cada semana. É mole?
A verdade é que o baiano daqui sabe receber o
visitante, garantindo a dose certa de requinte e bons serviços em quase
tudo, mas sem frescuras. Em outras palavras, dá para comer num bom
restaurante, com talheres de prata, sem que ninguém venha lhe pedir para
vestir a camisa. Ou estacionar em um lugar proibido "só cinco
minutos, seu guarda", que tudo bem. O poeta (Manuel Bandeira) disse
que lugar bom era Pasárgada: "Lá sou amigo do rei". Bem, em
Porto Seguro você não precisa botar banca, mostrar cartão ou celular,
nem ser amigo de ninguém: aqui você é tratado de "meu rei".
Assim na lata, nada de amizade e tal, é você em pessoa: "meu
rei". E tem mais: não precisa saber dançar, que eles te ensinam,
há mais mulheres do que homens (segundo os homens) e mais homens do que
mulheres (segundo as mulheres). E, se não encher muito o saco, pode beber
até cair que ninguém repara. Quer dizer, é ou não um reino legal?
Sem contar as cidades e vilas vizinhas, ao norte e ao
sul, já informalmente incorporadas à geografia de Porto Seguro. Sem
falar também nos 90 quilômetros de litoral dessa abençoada região sul
da Bahia, as praias ainda desertas, as árvores seculares, as ilhas, os
recifes de coral, os bancos de areia, os inacreditáveis sítios de
mergulho, a água-de- coco e o peixe ao molho de maracujá.
E tem mais: foi aqui que tudo co-meçou. Rezam as
cartilhas, sabemos, que no dia 22 de abril de 1500, Pedro Álvares, nosso
Cabral, veio dar nessas terras em nome da Coroa portuguesa. É só
raciocinar: a inflação, o sufoco, os escândalos, o jeitinho brasileiro,
a Lei de Gérson, o trânsito desgraçado, o crime organizado, o patrão,
as contas pra pagar, o vizinho do andar de cima, tudo o que hoje nos põe
loucos começou aqui. E agora, pra se livrar desse inferno cotidiano, a
gente passa férias onde? Em Porto Seguro. E cada vez mais nus, como os
índios.
Mas há quem diga que Cabral não foi o primeiro, que
outros aventureiros já haviam circulado por aqui anteriormente sem deixar
pistas. E, cá entre nós, ainda não há acordo sobre o lugar exato onde
as naus encostaram: Porto Seguro alega que foi em suas praias, mas a
vizinha Santa Cruz de Cabrália (25 quilomêtros) também. E, há várias
placas, uma em cada canto, indicando o "lugar exato" da primeira
missa.
A confusão é oportuna, dá assunto aos guias
turísticos, diver-te as crianças, incrementa o comércio am-bulante e as
rodas de capoeira. Com a quantidade de turistas que tem vindo pra cá nas
últimas temporadas - segundo a Bahiatursa, Porto Seguro já é o terceiro
pólo turístico do Nordeste, fica atrás apenas de Salvador e Recife -,
é até bom que haja mais de um lugar exato pra tudo, assim distribui-se a
demanda, não tumultua demais, sobram vagas pra estacionar.
Mas ninguém zanza por aqui atrás apenas de cultura
histórica. Para a maioria, aliás, isso é o que menos importa. O grande
barato em Porto Seguro e suas imensuráveis cercanias é praia, dança e
paquera, não nessariamente nessa ordem. Desde que o aeroporto local
ganhou alguma compostura e passou a receber aviões de porte, a região
explodiu, virando um dos filés das agências de viagem. É inacreditável
a quantidade de hotéis, pousadas, restaurantes e locadoras de carros que
hoje se espalham por aqui, impressionando os que conheceram o lugar há
talvez dez ou quinze anos.
Porto Seguro nunca mais foi a mesma depois da lambada,
a moda musical e dançante que nos anos 80 deu a volta ao mundo. A reboque
do famoso roça-roça, disseminaram-se por aqui as cabanas de praia, ou
melhor, as supercabanas de praia. Em outros tempos eram um ou dois
quiosques de sapé, um system, duas caixi-nhas de som, uma dúzia de mesas
e o dono na cozinha. Agora as cabanas são grandes negócios, ainda de
sapé, mas gigantescas, verdadeiros parques de diversão pra gente grande
(e aspirantes). Uma boa cabana tem restaurante, vários bares,
minishopping, uma enorme pista de dança, som profissional, palco, luzes,
professores de lambada, lambaeróbica (lambada + aeróbica),
coreógrafos...
É nesses templos de luxo e luxúria que todo mundo,
todo dia e toda noite, costuma aparecer. E, como as agências de viagem
levam e entregam direitinho seu filho no aeroporto, tornou-se
impressionante o número de adolescentes desacompanhados que invade Porto
Seguro a cada semana. Não há dados oficiais, mas os teens seguramente
são maioria. Adoram Mamonas Assassinas, mas também caem no "Samba
do Tchaco", na "Dança da Galinha", "da Garrafa",
"da Bonequinha", no "Melô do Tchan" e outras muitas,
quase todas sacaninhas, com duplo sentido, feitas mesmo para serem
dançadas pelas multidões, em uníssono vibratório, coreografia de
massa: os baianos musculosos, vestidos no estilo elegante da terra,
mostrando os passos, as mudanças marcadas dos movimentos, e a galera aqui
reproduzindo tudo, sem vergonha de ser feliz.
Nesse universo impera um adereço, o tererê. Trata-se
de uma trancinha única, bem no cucuruto, com um jogo de miçangas
coloridas. Os artesãos da modinha usam fios artificiais, quando é o
caso, e por isso espalham o penduricalho até entre os quase carecas. Ir a
Porto Seguro e não voltar de tererê é uma heresia.
Outro must é a lista sem fim de drinques especiais,
pre-parados à base de frutas, guaraná em pó, leite condensado, vodca,
conhaque, cachaça e outras substâncias secretas. Dentre todos, sem
dúvida, o mais famoso, mais querido, mais bebido, é mesmo o capeta. O
cheiro da gororoba mistura-se no ar ao daqueles cigarros da Indonésia,
misto-quente de cravo e canela. E pronto: está formada a química da
galera.
Engraçado como a garotada gosta de andar em turma.
Quando um canta, todo mundo canta; quando um pára, todo mundo pára;
quando um bebe, todo mundo bebe. Aí passam a andar abraçados, dizendo-se
amigos até debaixo d’água, aquela coisa toda. Quando o grupo é só de
meninos, mexem com todas as meninas que passam. Quando o grupo é só de
meninas, elas ficam passando na frente dos meninos só pra chatear.
Em Porto Seguro existe um território feito de
encomenda para as galeras: Passarela do Álcool. Ali se sucedem vendedores
de fitas com as mais-mais do momento, o menino que escreve seu nome num
grão de arroz, tererezeiros, camiseteiros, trambiqueiros e,
principalmente, barraquinhas de bebida, todas fartamente decoradas com
frutas tropicais e cardápios de fazer vovó ficar vermelha.
Olha só o que se pode comprar com 3 reais: pau do
índio (conhaque, cacau, guaraná em pó, leite condensado, açúcar e
gelo), coceirinha no saco (guaraná em pó, vodca, uva, leite condensado,
açúcar e gelo), rosquinha doce (pêssego, abacaxi, morango, vinho, leite
condensado, creme de leite, açúcar e gelo) e lambidinha nos seios
(cacau, pêssego, pêra, sidra, leite condensado, creme de leite, açúcar
e gelo) - isso pra ficar nos nomes mais comportados. Parece que a
Secretaria Municipal de Turismo andou dando em cima dos barraqueiros da
passarela, criando normas para a nomenclatura dos drinques, tamanha a
esbórnia. Quem conta isso é uma senhora seriíssima, barraqueira famosa,
a Dona Xoxota.
E é fácil descobrir a idade e os hábitos dos
principais consumidores. Dois ingredientes reveladores aparecem em quase
todas as receitas: leite condensado e guaraná em pó. O primeiro remonta
ainda aos saudáveis docinhos e frapês que mamãe prepara em casa, não
amarga na boca e desce fácil. O segundo é pra deixar todo mundo
acordado, varando a noite, que por aqui começa sempre pra lá das 11,
invariavelmente com fila pra entrar.
Daria pra perguntar se o peso da moqueca, o bobó e o
vatapá têm alguma coisa a ver com isso, mas ali está o portinho da
balsa que atravessa o Rio Buranhém. Do lado de lá, meros dez minutos de
viagem, alcança-se a ponta do Apaga Fogo, porta de entrada para o litoral
sul, Arraial D’Ajuda (4 quilomêtros), Trancoso (25 quilomêtros) e
Caraíva (67 quilomêtros), mitos dos almanaques praieiros e de inúmeras
histórias de malucos. É do lado de lá também que o viajante encontra
um pouco mais de sossego, praias menos freqüentadas e cabanas como
antigamente.
Durante anos, ouvimos sobre Arraial e Trancoso
histórias de hippies que deram certo, gringos barbudos negociando terras,
gente que chutou o balde na cidade grande e veio pra Arraial e Trancoso
investir a grana do telefone e da indenização. Pois bem, é tudo
verdade, mas já não mais a mesma coisa. Agora está difícil achar
terras a preço de banana, muitos pescadores viraram prósperos
comerciantes e até nos fins de mundo, lá na casa do jébi jébi, como
dizem os nativos, até lá você encontra um grupo de turismo organizado,
pronto pra desorganizar falando alto, jogando latinhas e bitucas pelos
cantos.
Mas Arraial consegue se manter em cima do muro,
buscando equilibrar os assédios do progresso e a índole provinciana da
antiga aldeia de pescadores. As ruas ainda são de terra batida, mas os
casebres já ganharam massa fina. Tem minishoppings, mas são de muito bom
gosto. E tem cinema, disque-pizza, tênis clube... À noite, a Ruazinha do
Novelo se transforma em Broadway (ou Bróduei, como pre-ferem os
puristas). Bares espalham suas mesinhas no calçadão e instauram
espontaneamente um concurso de quem põe o som mais alto: aqui toca
reggae, ali um samba, bem em frente Caetano e Gil, mais pra lá um Pink
Floyd e tudo bem. O movimento na Broadway atinge seu ápice à meia-noite,
antecipando entusiasmo para as festas que tomam os cantos de praia
madrugada adentro.
A Lagoa Azul, em Arraial D’Ajuda, é o símbolo maior
das mudanças trazidas pelo crescimento cego. O que antes era mesmo uma
lagoa, azul como o nome su-gere, nem água tem mais. Mexeram ali, tiraram
água, desviaram, sobrou lama, à qual se atribui agora valores
medicinais. Mas as praias de Arraial continuam baca-nas. Mucugê e Pitinga
são as mais procuradas, mas o melhor é não ficar em nenhuma, manter-se
em trânsito. Logo cedo, muita gente repete os hábitos imemoriais dos
nativos, a marcha setentista dos andarilhos cabeludos, largando na Ponta
do Apaga Fogo, junto do Hotel Paradise, e descendo rumo sul, 4, 5, 10
quilômetros ou até mais, conforme o fôlego, a maré, a dor no joanete e
o fator do protetor solar.
Lá dentro, a estrada segue poeirenta até Trancoso,
depois bem ruim até antes de Caraíva, onde só se chega mesmo de canoa.
Saindo de Arraial, passa-se junto à Praia do Taípe e Rio da Barra e, já
em Trancoso, chega-se à Praia dos Coqueiros e Praia dos Nativos. Depois
de Trancoso, andando pela areia como convém, alcançam-se lugares de
ninguém, como Pedra Grande, Rio Verde, Itaquena, Rio dos Frades, Jacumã,
Espelho, Juacema e finalmente Caraíva. Nesse trecho entre Trancoso e
Caraíva encontra-se muita gente que imita os índios, andando "sem
cobertura alguma, nem fazendo mais caso de encobrir ou deixar de encobrir
suas vergonhas do que de mostrar a cara", como bem disse Pero Vaz,
nosso Caminha.
Trancoso, talvez por causa dos 25 quilomêtros de terra
que a separam de Porto Seguro, continua ainda remetendo ao tempo dos
jesuítas. A arquitetura das casinhas, a Igreja de São João Batista, o
Quadrado - a "praça central", onde tudo e todos convergem -, o
andar lento e aparentemente incerto das pessoas, os vestígios da Mata
Atlântica, tudo conspira a favor do passado. Claro, é preciso fazer
vista grossa às residências transformadas em pousadas e restaurantes,
às portinhas que viraram minigalerias de arte, às cabanas na praia e
outros confortos criados exatamente para que a gente dê as caras.
Vá a Passarela do Álcool (Av. Assis Chateaubriand,
Centro), uma rua comum apenas durante o dia. Barraquinhas para beber,
comer, beber, passear, beber... - Reggae Night (Av. do Descobrimento,
s/nº-, Centro, fone 288,1368), casa de shows, lambaeróbica e bebida. -
Boca da Barra (Av. do Descobrimento, 400), auto-intitulada "A 1ª- Casa de Lambada do Brasil", com pista
de dança, show, comida e bebida. Barramares (Rodovia Porto Seguro/Cabrália,
km 70,2, Praia de Taperapuã, fone 288-2980), complexo de diversões na
beira da praia com shows, pista de dança, lambaeróbica, lojinhas,
agências bancárias, jet-ski, ultraleve, banana-boat, comida e muita
bebida. - Axé Moi, a mesma coisa, inclusive bebida. - Em Arraial D’Ajuda
vá à Broadway (ou Bróduei), bem no centro, uma rua estreita transformada em calçadão,
com comércio variado, mesinhas, música tocando alto e
bebida. - Também em Arraial, programa para quem tem menos de 30, pouco
juízo e disposição para aparecer só depois da meia-noite: luau no
Burako Loko, um auê na beira da praia, com discotecagem de primeira (rock
& reggae), gente linda, aquela liberdade. E até bebida.
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